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hope your road is a long one,
full of adventure, full of discovery. From: Ithaka (Konstantinos Kaváfis)


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Sobre Vinhos e Montanhas - Aconcágua.


"Para as minhas irmãs".




O assunto do almoço era sobre vinhos, nada mais próprio a se discutir em volta de uma mesa de refeições. A pergunta era “qual o vinho da sua vida”? Bem aberta e ampla, como convém para que todos pudessem relatar as suas melhores experiências ou as suas predileções.


Tudo começou com um pequeno comentário sobre o pedantismo dos “connoisseurs” de vinhos. É muita informação, ou melhor, muita confusão de informação sobre vinhos, em uma época em que o seu consumo é estimulado e glamurizado pelo mercado, tornando o simples ato de beber e expressar a opinião sobre a bebida uma grande exercício de imaginação e de arrogância. Alguém já ouviu que um vinho tem um aroma de “pêlo molhado”? Consegue definir o que é este aroma? E o que dizer de aroma “vulcânico”? Os mais próximos vulcões ativos estão a alguns milhares de quilômetros de distância, portanto não há de se ter muita intimidade com os ditos aromas vulcânicos. No entanto estes são termos usados pelos enófilos (ou seria melhor chama-los de “enófitos”) para caracterizar os vinhos.


Mas vamos à história do “meu vinho”. Passou-se em novembro de 2000, quase na virada do Milênio, durante uma viagem pela Cordilheira dos Andes que começou no Noroeste da Argentina – Parque Provincial de Ischigualasto (também conhecido como Valle de la Luna), na Provincia de San Juan – estendendo-se por mais de 3.500 km em direção ao Sul até Ushuaia, na Terra do Fogo. Foi a minha primeira grande viagem pela Cordilheira. Estava na estrada há quase uma semana e tinha programado um “trekking” solo no Parque Provincial do Aconcágua, onde está localizada a maior montanha do Continente Americano (o pico do Aconcágua está a 6.962 msnm.).

 
Estrada na pré-cordilheira andina.


Na véspera tinha rodado próximo de 400 km, desde uma pequena cidade chamada San José de Jáchal até a entrada do Parque do Aconcágua, quase todo o trajeto em estradas de “rípio” (cascalho) pela pré-cordilheira andina. Durante este percurso tive o primeiro contato desta viagem com os Andes e me dei conta da grandeza do cenário, como diria Alain de Botton (A Arte de Viajar): “de encantamento com o sublime”. Sem condições de pernoitar próximo ao Parque, após uma primeira conversa com os Guarda-Parques para me inteirar das condições para realizar o trekking no dia seguinte, retornei 70 km até Uspallata.


Indo para o Aconcágua.

 

 


Na manhã da caminhada acordei cedo e dirigi-me novamente para a entrada do Parque. Como estava sem a permissão oficial para o trekking no Aconcágua (que deveria ser obtida na Secretaria de Meio Ambiente em Mendoza, distante quase 200 km do Parque), negociei com o Chefe dos Guardas uma autorização precária para fazer um trekking curto entre a portaria do Parque – “Laguna de Horcones” (2.800 msnm) - até o acampamento “Confluencia” (3.300 msnm). O compromisso com os Guarda-Parques era o de retornar antes das 18 horas.
 
Entrada do Parque Provincial do Aconcágua.
 

Início da caminhada.
 
 

Vencer o desnível de 500 m entre a portaria do Parque e o acampamento significou caminhar aproximadamente 7 km pelo vale do rio Horcones em quase 3 horas. Neste percurso, como era temporada de escalada no Aconcágua, cruzei com alguns montanhistas subindo e descendo dos acampamentos de altitude. Gente de todos os calibres, desde escaladores solitários com aparência e atitude de quem tem experiência – julgamento meu e totalmente subjetivo – até “Hermanos” em calça jeans e manga de camisa afirmando que fariam o pico. São estes últimos que dão muito trabalho para as equipes de resgate.

Vale do rio Hocones.

Aconcágua ao fundo.



Por volta do meio-dia cheguei ao destino programado. Um rápido lanche em meio a um papo animado com os Guarda-Parques que controlavam o fluxo de montanhistas em passagem pela “Confluencia” - dos quais ganhei um pedaço de bolo e a pergunta admirada de como tinha conseguido passar pelo controle de entrada sem o “permisso”? - estava pronto para fazer o retorno. Ainda não tinha realizado plenamente esta pequena conquista pessoal, mas continuava inebriado pela grandeza do cenário que me rodeava. Em qualquer direção que olhasse eram montanhas majestáticas dos mais variados tons de ocre, com seus picos nevados que arranhavam um céu continuamente azul e, de quando em quando, uma pequena torrente formada pelo degelo de glaciares. Assim comecei a descer.
 
No acampamento "Confluencia".
 

De volta a “Horcones” antes das 18:00h – conforme prometido aos Guarda-Parques - lembrei-me que era aniversário das minhas irmãs e ocorreu-me uma ideia, presentear-lhes com uma recordação desta pequena aventura. Sem nada poder levar além de lembranças, como diriam os ecólogos de plantão, tirei uma foto do paredão da face Sul do Aconcágua pensando em entregar-lhes no meu retorno. Esta foto sem a menor preocupação estética, assim como a sua intenção, ficou esquecida entre as minhas memórias de viagem. Chegou o momento de resgatar a foto e a intenção e celebrar as boas décadas vividas pelas duas. Parabéns irmãs.
 
Esta é a foto - face Sul do Aconcágua.
 

E onde entra o vinho nesta história? Entra para dar o fecho nesta pequena aventura. Voltei a Uspallata no fim-da-tarde corroído pela fome, com uma sensação de prazeroso cansaço pelo feito do dia e louco por um prato de comida. Perguntei para a dona da pensão onde poderia jantar. Ela sugeriu-me um restaurante de “parrilla” na Ruta 7, não muito distante de onde estava, recomendando que comentasse com o dono a sua indicação para que fosse bem tratado. Já escuro, e com a expectativa de uma comida honesta, encontrei o restaurante. Para minha decepção estava às escuras, sem nenhum sinal de que estivesse funcionando. Desci do carro para espiar pela porta e ver se encontrava algum sinal de que abriria aquela noite. Nada, estava deserto. Resignado voltava ao carro - pensando onde encontraria outro lugar para comer - quando estacionou ao meu lado um pequeno Renault 7. Deste saltou um senhor com um pequeno embrulho nas mãos e cara amistosa. Perguntei se o restaurante estava funcionando e a pronta resposta foi de que estava abrindo naquele instante. Era o dono do restaurante chegando com a carne para o jantar. Não recordo o nome desta pessoa, tampouco se chegamos a nos apresentar, mas o restaurante chamava-se “Estancia de Elías”.

Vou chama-lo de Elías então. Convidou-me a entrar e, como era o único freguês, ao invés de uma mesa indicou-me o balcão próximo à grelha de assar, que ocupava todo o centro do restaurante. Enquanto ele preparava o fogo e desembrulhava o pacote de carnes, começamos uma animada conversa sobre viagens e vinhos. Como bom “Mendocino” e “parrillero”, Elías conhecia os cortes tradicionais e os vinhos locais. Entre um pedaço de “asado de tira” e outro de “vacio”, conversamos sobre suas viagens para a Serra Gaúcha, onde foi apresentado aos vinhos brasileiros e fez amigos. Ofereceu-me um tinto da região, que sendo sincero, não lembro nem a variedade da uva nem a “bodega” produtora, lembro somente que era um vinho rústico, sem muitas sutilezas, mas com aquela honesta qualidade que deve ter todo vinho para consumo cotidiano. Ninguém mais entrou no restaurante àquela noite e o atendimento cortês não custou nenhum “Peso” extra.

O ambiente hospitaleiro, a boa conversa e a carne saborosa foram suficientes para transformar um vinho comum em uma bebida especial, que corou a minha pequena conquista no Aconcágua.
 
 

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