"Para as minhas irmãs".
O assunto do almoço era sobre vinhos, nada mais próprio a se discutir
em volta de uma mesa de refeições. A pergunta era “qual o vinho da sua
vida”? Bem aberta e ampla, como convém para que todos pudessem relatar as suas melhores experiências ou as suas predileções.
Tudo começou com um pequeno comentário sobre o pedantismo dos
“connoisseurs” de vinhos. É muita informação, ou melhor, muita confusão de
informação sobre vinhos, em uma época em que o seu consumo é estimulado e
glamurizado pelo mercado, tornando o simples ato de beber e expressar a opinião
sobre a bebida uma grande exercício de imaginação e de arrogância. Alguém já
ouviu que um vinho tem um aroma de “pêlo molhado”? Consegue definir o que é
este aroma? E o que dizer de aroma “vulcânico”? Os mais próximos vulcões ativos
estão a alguns milhares de quilômetros de distância, portanto não há de se ter
muita intimidade com os ditos aromas vulcânicos. No entanto estes são termos
usados pelos enófilos (ou seria melhor chama-los de “enófitos”) para caracterizar
os vinhos.
Mas vamos à história do “meu vinho”. Passou-se em novembro de
2000, quase na virada do Milênio, durante uma viagem pela Cordilheira dos Andes
que começou no Noroeste da Argentina – Parque Provincial de Ischigualasto
(também conhecido como Valle de la Luna), na Provincia de San Juan –
estendendo-se por mais de 3.500 km em direção ao Sul até Ushuaia, na Terra do
Fogo. Foi a minha primeira grande viagem pela Cordilheira. Estava na estrada há
quase uma semana e tinha programado um “trekking” solo no Parque
Provincial do Aconcágua, onde está localizada a maior montanha do Continente
Americano (o pico do Aconcágua está a 6.962 msnm.).
Estrada na pré-cordilheira andina. |
Na véspera tinha rodado próximo de 400 km, desde uma pequena
cidade chamada San José de Jáchal até a entrada do Parque do Aconcágua, quase
todo o trajeto em estradas de “rípio” (cascalho) pela pré-cordilheira andina. Durante
este percurso tive o primeiro contato desta viagem com os Andes e me dei conta
da grandeza do cenário, como diria Alain de Botton (A Arte de Viajar): “de encantamento com o sublime”. Sem
condições de pernoitar próximo ao Parque, após uma primeira conversa com os
Guarda-Parques para me inteirar das condições para realizar o trekking no dia
seguinte, retornei 70 km até Uspallata.
Indo para o Aconcágua. |
Na manhã da caminhada acordei cedo e dirigi-me novamente para
a entrada do Parque. Como estava sem a permissão oficial para o trekking no
Aconcágua (que deveria ser obtida na Secretaria de Meio Ambiente em Mendoza,
distante quase 200 km do Parque), negociei com o Chefe dos Guardas uma autorização
precária para fazer um trekking curto entre a portaria do Parque – “Laguna de
Horcones” (2.800 msnm) - até o acampamento “Confluencia” (3.300 msnm). O
compromisso com os Guarda-Parques era o de retornar antes das 18 horas.
Entrada do Parque Provincial do Aconcágua. |
Início da caminhada. |
Vencer o desnível de 500 m entre a portaria do Parque e o
acampamento significou caminhar aproximadamente 7 km pelo vale do rio Horcones
em quase 3 horas. Neste percurso, como era temporada de escalada no Aconcágua,
cruzei com alguns montanhistas subindo e descendo dos acampamentos de altitude.
Gente de todos os calibres, desde escaladores solitários com aparência e
atitude de quem tem experiência – julgamento meu e totalmente subjetivo – até “Hermanos” em calça jeans e manga de
camisa afirmando que fariam o pico. São estes últimos que dão muito trabalho
para as equipes de resgate.
Vale do rio Hocones. |
Aconcágua ao fundo. |
Por volta do meio-dia cheguei ao destino programado. Um
rápido lanche em meio a um papo animado com os Guarda-Parques que controlavam o
fluxo de montanhistas em passagem pela “Confluencia” - dos quais ganhei um
pedaço de bolo e a pergunta admirada de como tinha conseguido passar pelo
controle de entrada sem o “permisso”?
- estava pronto para fazer o retorno. Ainda não tinha realizado plenamente esta
pequena conquista pessoal, mas continuava inebriado pela grandeza do cenário
que me rodeava. Em qualquer direção que olhasse eram montanhas majestáticas dos
mais variados tons de ocre, com seus picos nevados que arranhavam um céu
continuamente azul e, de quando em quando, uma pequena torrente formada pelo
degelo de glaciares. Assim comecei a descer.
No acampamento "Confluencia". |
De volta a “Horcones” antes das 18:00h – conforme prometido
aos Guarda-Parques - lembrei-me que era aniversário das minhas irmãs e
ocorreu-me uma ideia, presentear-lhes com uma recordação desta pequena
aventura. Sem nada poder levar além de lembranças, como diriam os ecólogos de
plantão, tirei uma foto do paredão da face Sul do Aconcágua pensando em entregar-lhes
no meu retorno. Esta foto sem a menor preocupação estética, assim como a sua
intenção, ficou esquecida entre as minhas memórias de viagem. Chegou o momento
de resgatar a foto e a intenção e celebrar as boas décadas vividas pelas duas. Parabéns
irmãs.
Esta é a foto - face Sul do Aconcágua. |
E onde entra o vinho nesta história? Entra para dar o fecho
nesta pequena aventura. Voltei a Uspallata no fim-da-tarde corroído pela fome,
com uma sensação de prazeroso cansaço pelo feito do dia e louco por um prato de
comida. Perguntei para a dona da pensão onde poderia jantar. Ela sugeriu-me um
restaurante de “parrilla” na Ruta 7, não muito distante de onde estava,
recomendando que comentasse com o dono a sua indicação para que fosse bem
tratado. Já escuro, e com a expectativa de uma comida honesta, encontrei o
restaurante. Para minha decepção estava às escuras, sem nenhum sinal de que
estivesse funcionando. Desci do carro para espiar pela porta e ver se
encontrava algum sinal de que abriria aquela noite. Nada, estava deserto.
Resignado voltava ao carro - pensando onde encontraria outro lugar para comer -
quando estacionou ao meu lado um pequeno Renault 7. Deste saltou um senhor com
um pequeno embrulho nas mãos e cara amistosa. Perguntei se o restaurante estava
funcionando e a pronta resposta foi de que estava abrindo naquele instante. Era
o dono do restaurante chegando com a carne para o jantar. Não recordo o nome
desta pessoa, tampouco se chegamos a nos apresentar, mas o restaurante
chamava-se “Estancia de Elías”.
Vou chama-lo de Elías então. Convidou-me a entrar e, como era
o único freguês, ao invés de uma mesa indicou-me o balcão próximo à grelha de
assar, que ocupava todo o centro do restaurante. Enquanto ele preparava o fogo
e desembrulhava o pacote de carnes, começamos uma animada conversa sobre
viagens e vinhos. Como bom “Mendocino” e “parrillero”, Elías conhecia os cortes
tradicionais e os vinhos locais. Entre um pedaço de “asado de tira” e outro de
“vacio”, conversamos sobre suas viagens para a Serra Gaúcha, onde foi
apresentado aos vinhos brasileiros e fez amigos. Ofereceu-me um tinto da
região, que sendo sincero, não lembro nem a variedade da uva nem a “bodega”
produtora, lembro somente que era um vinho rústico, sem muitas sutilezas, mas
com aquela honesta qualidade que deve ter todo vinho para consumo cotidiano. Ninguém
mais entrou no restaurante àquela noite e o atendimento cortês não custou
nenhum “Peso” extra.
O ambiente hospitaleiro, a boa conversa e a carne saborosa
foram suficientes para transformar um vinho comum em uma bebida especial, que
corou a minha pequena conquista no Aconcágua.
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